PADRE
ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697)
SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
Já
que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais
antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador
que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus
annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter
sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem
sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones,
quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As
palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o
curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo
ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado
de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou
azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas
as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem
que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores
fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da
outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer
sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que
não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre
em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e
também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim
há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso
temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito
claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que
o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que
sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante
para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus
juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever
entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não
alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos
vêem, e muito poucos as medem.
Sim,
Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este
desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto,
os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo
culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que
somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de
entender o que diz?!
Enfim,
que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os
peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera
desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de
converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não
sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos
triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre
à lembrança destes dois fins.
SERMÃO DO BOM LADRÃO
Suponho finalmente que os ladrões de
que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna
condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou
alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus
fuerit: furatur enim ut esurientem impleat animam. (10).O ladrão que furta
para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que
eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais
debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio
Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel
latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso
sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et
publice exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou
espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais
própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam
os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os
outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda
vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de
justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões
grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais
ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas!
Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro,
e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma
província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?
De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Nou
cessat simul furta, vel punire, vel facere: Seronato está sempre ocupado em
duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça,
senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
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